A revista Veja parece ter perdido definitivamente o rumo, talvez em função do vexame histórico na cobertura da crise financeira internacional. Afinal, não é todo dia que uma redação prepara uma capa espetacularmente incisiva, com Tio Sam de dedo em riste e a manchete garantindo: "Eu salvei você" (edição 2079, com data de capa 24/09). Capa esta que dias depois se torna um case de "barriga" jornalística, uma vez o "crash" de 29 de setembro revelou não apenas que Tio Sam não havia conseguido salvar ninguém como estava desesperadamente em busca de uma solução que envolvesse a União Européia e até países emergentes. A barriga foi tão descomunal que na semana seguinte a rival CartaCapital fez graça e repetiu a capa da Veja, com o mesmo Tio Sam de dedo em riste, acompanhado por uma manchete marota: "Ele não salva ninguém".
Se o problema fosse apenas na forma, tudo bem, "barrigas" acontecem nas melhores redações (em Veja, com uma freqüência um tanto maior, estão aí o boimate e os milhões do Ibsen Pinheiro que não me deixam mentir). A questão central não está na forma, está no conteúdo. Veja há muito tempo não é uma revista jornalística, mas um panfletão conservador, editado por uma equipe que conta com a fina flor do pensamento reacionário brasileiro. A crise global, porém, parece ter mexido com os nervos do pessoal da Veja e o panfletão perdeu o rumo.
Em um primeiro momento, Veja apresentou ao distinto público a idéia de que a crise já tinha acabado (com o anúncio do primeiro pacote de Bush-Paulson), o que havia era um "soluço" absolutamente normal no capitalismo. Na semana seguinte, com data de capa de 1° de outubro, mas circulando no final de semana de 27/28 de setembro, portanto um dia antes do "crash" de 29/9, a revista da editora Abril voltou a dar capa para crise, fazendo uma espécie de "balanço" do que vinha ocorrendo. "Depois do Desastre" era a manchete da capa, mas o desastre real ainda nem tinha acontecido.
O problema de Veja é que os valores nos quais a revista continua acreditando e defendendo estavam virando pó com a crise e não havia discurso coerente que servisse para manter o panfletão em pé, muito menos com o disfarce de veículo jornalístico. Primeiro, veio a euforia (ok, existe uma crise, reconhecemos, mas Bush é "dos nossos", vai dar um tiro certeiro e cortar o mal pela raiz).
Não funcionou, para a perplexidade dos jornalistas que cuidam de traduzir o pensamento reacionário norte-americano em uma linguagem acessível a qualquer idiota, e a revista começou a tentar reconhecer que se tratava mesmo de uma crise gravíssima e que expõe as entranhas de um sistema podre, desregulado e baseado na ganância de gente que vendia terrenos na lua sem o menor escrúpulo, contando com a certeza da impunidade.
O povo não é bobo?
Enquanto tateia em busca de um discurso para a crise – se os mercados continuarem eufóricos, provavelmente a próxima capa será um enorme "UFA" – Veja não descuida do front interno. Na edição corrente (2082, com data de capa de 15/10), a "Carta ao Leitor", espaço editorial da revista, leva o título "O povo não é bobo", acompanhada de uma grande foto do prefeito Gilberto Kassab.
O recado da revista ao seu público começa assim: "O primeiro turno das eleições municipais demonstrou, outra vez, que a esmagadora maioria dos brasileiros sabe, sim, votar, ao contrário do que ainda insistem em propalar os descrentes na democracia nacional (felizmente, poucos)." Em seguida, vem o argumento "racional" de que a população votou nos melhores, gente que trabalha sério, "independente do partido".
Beto Richa (PSDB) e Fernando Gabeira (PV) são citados no texto, e Kassab, na legenda da foto ("Gilberto Kassab, de São Paulo: exemplo de que a maioria dos brasileiros sabe, sim, votar"). No final do texto, o veredito final: "Não basta para um partido – qualquer um – contar só com a força de um presidente da República bem avaliado e simpático. É preciso muito mais. O povo não é bobo."
Não, de fato o povo não é bobo e já sabe que Veja tem lado. Neste ponto, aliás, seria mais honesto e correto copiar o que de bom existe nos Estados Unidos e explicitar, no editorial, que a revista apóia os candidatos da oposição, especialmente os do PSDB e DEM — legendas que por sinal apóiam Gabeira no Rio. É assim que se faz lá fora e é assim que agiram CartaCapital e, em diversas ocasiões, a Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo.
Veja, ao contrário, editorializa as reportagens. Um bom exemplo está também na edição desta semana, na reportagem que faz um balanço do resultado das urnas. A revista reconhece que o PT cresceu, mas diz que foi nos grotões. Um infográfico está lá para quem quiser fazer contas: em número absoluto de votos, o PT cresceu 1% em relação a 2004, o DEM teve 17% a menos do que na votação anterior e o PSDB perdeu 8% dos votantes de quatro anos atrás. O PMDB, líder no país pelo critério de prefeitos eleitos, viu seu eleitorado crescer 30%.
Qualquer foca de jornalismo faz as contas, soma os danos e conclui que o lead é a derrota dos partidos de oposição, que perderam exatamente 25% do eleitorado de quatro anos atrás. Qualquer foca, menos a Veja, que preferiu destacar o aumento de 30% do PMDB, um partido ônibus, que cabe qualquer um e que tem na resiliência a sua maior virtude. É justo que se dê destaque à vitória peemedebista, mas é evidente que o fato político mais relevante é a estrondosa derrota da aliança demo-tucana, com consequências evidentes na corrida sucessória de 2010.
No fundo, Veja age na política e na economia seguindo a máxima do ex-ministro Rubens Ricúpero: o que é bom (para o ideário conservador), a gente mostra; o que é ruim, a gente esconde. E nisto, fica aqui o reconhecimento, o pessoal da redação de Veja sabe fazer como ninguém...
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